"Como viver num mundo de espaço limitado onde bilhões de pessoas pensam diferente sem que limitemos a liberdade do próximo? "

“Como viver num mundo de espaço limitado onde bilhões de pessoas pensam diferente sem que limitemos a liberdade do próximo? “

Em novembro de 2016, durante uma jornada realizada pelo Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (EBEP) de São Paulo, o Prof. Drº Paulo César Endo iniciou as atividades da mesa com um trabalho instigante sobre o acervo de sonhos relatados pelos prisioneiros de Auschwitz. No percorrer de sua fala uma frase de efeito me chamou a atenção: “Não há associação livre sem liberdade”. Claramente o momento que vivemos em nosso país despertou em diversos pensadores diferentes percursos e perspectivas em torno do tema Política. Posso assegurar que os psicanalistas não ficaram de fora do movimento, e tal como os cabe, colocaram perguntas sobre o assunto que dificilmente seriam feitas por outros saberes. Como considerações sobre o ódio, violência e ressentimento.

Retornando a frase “Não há associação livre sem liberdade”, pensei inicialmente na complicada relação que temos no Brasil com a definição de Liberalismo. Sabemos que este não se aproxima do clássico Liberalism de Adam Smith, movimento inglês. Diria que conhecemos algo “abrasileirado”. Sugiro então para este texto um entendimento da liberdade num âmbito do público. Pois assim, imagino que conseguirei transmitir como relaciono a liberdade do sujeito público com a técnica da associação livre freudiana.

A técnica psicanalítica da associação livre está inscrita no que Sigmund Freud denominava de talking cure. Seu lugar como substituta da técnica da hipnose a coloca num lugar qualitativamente diferente, pois esta não está na lógica da sugestão. Como exemplo Freud dizia: “Diga-me tudo que vier em sua mente”. Nisso se define a associação livre, falar livremente de algum assunto sem o próprio juízo moral. Claramente uma tarefa árdua, mas de extrema importância no decorrer de uma análise. Para isso a escuta do analista também deve ser isenta de valor (poderíamos discutir isso melhor, mas o assunto vale outro texto). Acoplemos então a questão da liberdade no nosso caminho de raciocínio. É esperado que as resistências apareçam durante a associação livre, mas ainda assim podemos imaginar como uma pessoa privada de sua liberdade se portaria nesse contexto, tanto no âmbito social quanto no simbólico. Sabemos que na clínica com adolescentes, por exemplo, como as questões relacionadas à liberdade sexual são represadas quando vividas num ambiente coercitivo e punitivo.

Pensemos então a relação do que vimos acima com a questão da liberdade pública. Como viver num mundo de espaço limitado onde bilhões de pessoas pensam diferente sem que limitemos a liberdade do próximo? Vale considerar que algumas estruturas de pensamento não suportam a diferença; mas isso também vale outro texto. No texto de Freud, O Mal-estar na Civilização (1930), o autor aponta que a vida do homem civilizado impôs a limitação de certa fonte de prazer individual em prol da comunidade. Isso se traduz num contrato: se fulano não se satisfaz aqui, ciclano também não se satisfaz ali, então com as duas partes sendo inibidas vive-se em paz. Contrato mais simples não há. Podemos então entender que nossa liberdade pública acompanha certo “abrir mão” para que o outro exerça sua liberdade assim como eu. É um paradoxo. Uma perspectiva de analisar a crise que enfrentamos hoje seria essa.

De que isso vale para a técnica da associação livre? Pois bem, se o paciente deve falar livremente do que lhe vier à mente não há regra de como se deve manejar esse momento. Qualquer indução/sugestão atingiria o princípio de liberdade. Freud nos ensina que o que importa sempre é dito, em atos falhos, lapsos ou corporalmente. Elizabeth Roudinesco, psicanalista e historiadora, disse uma vez que a psicanálise só foi possível em países que passaram por algum tipo de revolução social (e agora principalmente vivemos um momento fervoroso nas discussões públicas). Não a toa que o Brasil hoje é apontado por ela como um dos principais desenvolvedores de psicanálise no mundo. A análise não se fecha num procedimento, não há manual. Ela é livre. Se o analisando chega à consulta e começa a falar como foi sua semana, o ato de interrompê-lo e induzir uma cadeia outra de associações fere seu espaço de liberdade.

A postura do analista tende a criar um espaço singular, de escuta, sem valor moral. Que seja dito em análise o que atravessa o sujeito, independente de sua posição política ou valores religiosos, ainda que suas ideias firam o direito de liberdade e ser do outro. Pois no espaço de análise não deve ser um lugar de julgamento ou penitência. Associar livremente é árduo e doloroso, mas numa civilização marcada pela coerção e performance garantir um espaço livre no setting analítico é um ato político.

Lucas Chagas Moreira - Psicólogo

Graduado em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense;
Com experiência teórico-prático e estudioso de Psicanálise, atua com clínica psicanalítica.
Para mais informações: http://lattes.cnpq.br/2277088041709759

 

 

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