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No início de minha formação, antes de pegar qualquer texto de psicanálise, meu professor me indicou um livro do Nietzsche como leitura básica, dentro dos parâmetros da pesquisa em que estávamos iniciando no momento. Este era “O nascimento da tragédia no espírito da música” de 1872. Foi uma leitura que contaminou completamente minha percepção da estética da teoria psicanalítica.

O que quero apontar aqui, sem resumir o livro, remete aos conceitos de apolínio e dionisíaco que estão presentes na obra. Foi através dessas duas perspectivas que comecei a entender o que era a psicanálise. Ou para ser mais fidedigno, o que do campo da psicanálise me afetou para decidir escrever este texto agora.

Para começar, entendamos que os conceitos citados acima não fazem parte do vocabulário psicanalítico, fora uma aproximação feita na época para discutir a estética da psicanálise. De modo geral pode-se dizer que as estéticas apolínea e dionisíaca são dicotômicas. Seus nomes se referem aos deuses Apolo e Dionísio da mitologia grega. Aqui tomarei apenas na estética dionisíaca por ser o objetivo deste breve texto.

Que características podem ser apontadas em Dionísio? Ora, o mais sabido é que era o deus do vinho e das festas. Os romanos o tomaram por Baco. Hoje o termo bacanal tem origem dessa apropriação. Mas a característica mais interessante, a meu ver, era sua origem como um deus estrangeiro. Nietzsche por sinal aponta no livro que os cultos a Dionísio aconteciam nos limites das cidades, longe da Polis onde a estética apolínia era valorizada.

O estrangeiro então mostra aos gregos uma estética da carne, que de algum modo não seriam parte deles, mas que os toma. Quase como uma impossibilidade de estar presente nos valores gregos da forma, tão apolíneos.

Como então aproximar isso da psicanálise? Lembremos que a mesma foi criada por um judeu, vienense e chamado pelos pais de “meu pequeno turco”. Geograficamente Viena está nos limites da chamada Europa Ocidental da época. Além de sabermos como os judeus, símbolos da burguesia, povo do deserto, eram tratados pelos arianos. Mas a relação não termina nesta metáfora. Sabemos que Freud ao inventar a psicanálise tomou a histeria como objeto de trabalho inicial e que propôs outro lugar para falar dela, além do discurso médico de sua contemporaneidade. Isso já é um fato lógico. Da mesma forma como Freud deu ao inconsciente um estatuto de objeto de estudo, ele inaugurou uma nova discursividade para os problemas outrora objetos de um único saber. Aí que está o estrangeiro.

Além de uma nova discursividade a psicanálise mostra ser um saber de caráter subversivo. De toda forma isso é correlacionável. Ao se colocar numa outra possibilidade perspectiva, a psicanálise subverte os saberes antes impostos. É claro que isso não tem como fim o aniquilamento de um poder-saber, mas invariavelmente tenta colocar em processo analítico algo que é facilmente dado como absoluto.

Permitam-me um exemplo grosseiro, mas caricato; eu criado na cidade do Rio de Janeiro mudei para o interior de São Paulo no meio do ano de 2016. Lembro que fiquei curiosamente atento com uma palavra utilizada na região: “mistura”. Esta é utilizada ao se referir aos alimentos que acompanham a base de uma refeição. A palavra “mistura” no contexto alimentício onde eu nasci provavelmente causaria certa aversão a quem escutasse, enquanto aqui é completamente normal. Percebem como um simples significante pode causar afetos diferentes em regiões separadas por 4 horas de viagem? Esse tipo de escuta acontece a todo tempo no campo da clínica. E provavelmente só um ouvido estrangeiro apontaria a ambiguidade do uso de um significante desses nesse contexto.

É um exercício da posição psicanalítica se manter nesse lugar subversivo. Um estrangeiro que por sua não alienação de sentidos pode apontar as ambiguidades de um discurso, ou sua incoerência. Mas como já nos ensinou Freud, não devemos cair no lugar da afirmação tirânica que determina que tudo está predito e que há algo absoluto.

Lucas Chagas Moreira - Psicólogo

Graduado em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense e pós-graduando em Psicanálise e Saúde pelo Hospital Israelita Albert Einstein, atua com clínica psicanalítica e coordena o Grupo de Estudos em Psicanálise do Espaço Elabora.

Para mais informações: http://lattes.cnpq.br/2277088041709759

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