“Tempos difíceis esses que estamos vivendo.” Tenho escutado e lido frases parecidas ou iguais a essa ultimamente com grande frequência. Não sei dizer quais índices pioraram no mundo nos últimos meses, não sei nem se algum índice piorou mesmo. O que posso dizer é que por onde tenho circulado há sempre alguém expressando que a vida está um tanto mais difícil, que o entorno anda mais arriscado e perigoso. Ao escutar essas falas o que fica em mim é a sensação frequente do medo.

Aprendi desde pequena que para não vivenciar coisas ruins eu deveria estar atenta à todo momento. Aprendi que a preocupação era uma obrigação. Que deveria me ocupar com o medo para não sofrer as causas dele.

Mas o que tem passado em minha cabeça ultimamente é este medo de que tanto falam hoje é um medo específico. O medo do Outro. Conhece este temido senhor? O Outro, de sobrenome Esse Estranho Que Não Sou Eu?

Sabem, tenho uma irmã a quem carrego profunda admiração. Alana, minha irmã um cadinho mais velha, se veste todo santo dia, desde que me entendo por gente, de uma característica encantadora. Nunca a vi sair da cama sem ela. Por onde quer que tenhamos passado, toda vez que olhava pro lado, lá estava ela com seu cabelo castanho arruivado sempre aberta ao contato com quem quer que se achegasse.

Gosto de brincar e tirar risos de novos amigos contando histórias de como eu era sempre surpreendida por suas antigas e longas amizades de três minutos. Descia do carro no posto de gasolina pra pagar a conta e quando retornava minha irmã estava escutando com toda atenção do mundo sobre a triste separação da irmã do frentista. Saia do elevador do prédio em que estávamos abrindo nosso novo consultório, não fazia nem uma semana que havíamos nos mudado e, após dar aquele educado e um tanto frio “boa noite, até amanhã” ao porteiro, notei que estava andando sozinha. Ao olhar para trás descobri minha irmã morrendo de rir com uma das mãos nas costas do senhor que ficava na portaria no período da noite. A intimidade de quem já partilhava piadas e dividia risadas sobre algum fato incomum e divertido do dia. Até mesmo em repartições públicas, o pesadelo de metade da população. Lá estava ela partilhando pacientemente algum incidente vivido pela atendente e oferecendo palavras de alento. Ainda hoje, alguns bons anos passados, quando encontramos esta moça somos recebidas com um sorriso caloroso.

Mas não se engane. Alana compartilha desse medo do Outro tão comum em nossa sociedade, afinal ela vive neste mesmo mundo em que vivemos você e eu. O que me faz escrever sobre ela é que apesar de compartilhar deste medo ela escolhe a cada manhã não apostar nele. Parece que, ao invés de ceder ao impulso de ser guiada pelo receio do que não conhece, ela decide pelo árduo e incrível caminho da dúvida. Ao invés de olhar uma pessoa desconhecida e agir com distanciamento e defesa, ela somente olha. E ao realmente olhar o outro coisas inesperadamente fantásticas costumam acontecer.

O que me impressiona é que não é que eu tenha uma super-heroína na família. Minha irmã não é uma pessoa que corra riscos desnecessários. Ela não é, nem de longe, a pessoa mais extrovertida e expansiva que conheço. Mas mantém internamente algo que aparentemente é difícil e raro de sustentar atualmente. O que percebo é que, de alguma forma, ela enxerga pessoas desconhecidas como ela enxerga a mim (sua irmã) ou a si mesma. Alguém capaz de acertar e errar, de fazer o bem e de machucar, uma pessoa – com toda a dor e a delícia, toda a complexidade e paradoxo que possa existir em um ser.

Talvez sejam mesmo tempos difíceis estes que estamos vivendo. E em tempos de insegurança nossos medos inflam, pesam e ocupam nossos espaços internos. Cheios de tudo o que não queríamos sentir fica mais difícil refletir, questionar, checar. Afinal, quem é que gosta de ficar vasculhando o que não nos deixa bem? Não é lá muito prazeroso e tranquilo investigar o que nos amedronta. Tendemos a olhar pro outro lado. Dentro ou fora não costumamos escolher encarar nossos medos de frente. Assim vamos nos afastando de tudo o que assusta ou incomoda. Nos distanciamos do outro porque em nossa sociedade, com frequência, aprendemos que se não conhecemos não compreendemos. Achamos então que o que não compreendemos é ruim, afinal trata-se de algo que não temos como controlar. Pronto. Sentimos medo, pavor e até raiva. Como tememos o que não podemos controlar!

O que talvez não paremos pra pensar é que a recíproca existe. E é verdadeira. Nós somos o Outro de alguém. Neste instante eu posso personificar o medo da pessoa que esta do lado de lá da porta, da rua, da tela do computador. Eu, você, todos nós somos o estranho de vários alguéns. Somos o medo de outras pessoas.

E então? Transformamos nossas casas em fortalezas e evitamos o mundo?

Fugimos e impedimos o contato com qualquer pessoa desconhecida para não sentir e nem fomentar medo?

Ao contrário. Damos uma de Alana e passamos a enxergar no outro aquilo que ele é. Uma pessoa, e é só.

Isso não significa se superexpor. Conhecer pessoas a fundo, criar laços é algo fundamental nessa vida. Não faz sentido confiar seus maiores segredos ou sua integridade a alguém que você não tem o mínimo de intimidade e segurança. A proposta aqui é outra, é fazer a escolha consciente de significar o outro não como um estranho, mas como um alguém. Percebe a diferença que não deveria existir, mas existe?

Olhar para estranhos, escutar estranhos, falar com estranhos, podem ser experiências enriquecedoras e libertadoras. Significar uma pessoa que não conhecemos apenas pelo que sabemos dela – que ela é uma pessoa – faz mais sentido, é ético, compassivo e torna o mundo um lugar cheio de possibilidades.

LARISSA ROXO – Assessora em Comunicação, Coach e Fonoaudióloga CRFª 13 921

Graduada em Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica PUC/SP;
Aprimoramento em Saúde Coletiva pela Universidade Católica PUC/SP;
Certificada pelo Instituto Holos de Qualidade através da International Coach Federation como Mentora e Coach;
Pós graduada em Motricidade Orofacial com Ênfase em Disfagias no Âmbito Hospitalar CEFAC/SP;
É Mentora em comunicação e Fonoaudióloga clínica. Com atuação no desenvolvimento de pessoas para o aperfeiçoamento da competência comunicativa, aprimoramento da comunicação verbal, comunicação não verbal, escuta ativa, recursos vocais, comunicação não violenta e transformação de conflitos, desenvolvendo comunicação assertiva, autentica e compassiva para o relacionamento interpessoal e profissional.

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